Coluna do Luan

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O espelho



2008

Debruçei-me contra o espelho. Esperava quebrá-lo. Parti-lo ao meio. Via a minha imagem desesperada, flagelada pelas lágrimas que escorriam no meu rosto. Tentei descobrir os motivos. Será que eu não me conhecia o suficiente para entender as razões que me levavam a chorar? Debruçei-me com mais força, com a esperança de liquidar de vez com minha imagem refletida.

1990

O telefone tocou. Era Gaspar, com sua voz ácida e direta, disse-me que eu teria uma chance de enriquecer. Não revelou como, não me forneceu contatos, apenas um número: 1344. Uma seqüência composta por dois números ímpares e dois números pares. Que finalidade teria? Joguei o telefone longe, ouvi o barulho de um objeto se quebrando. Droga, não era o espelho.

Eu estava morto, jazido, putrificado. Para o mundo eu era um cadáver. As pessoas simplesmente passam por mim como se eu não existisse. Ignoram-me caprichosamente em suas hipocrisias rotineiras. Pensam que são felizes. Que lutam por um país melhor. Mas dentro de seus carros, de seus possantes importados, são seres vivos urbanos, sociais, que serviram de cobaias ao próprio sistema humano. Guiam seus veículos automotores por estradas cujas obras superfaturadas viraram manchetes em jornais esquerdistas. Então, orgulhosos, baixam o vidro do possante importado e doam-me alguns centavos que teriam como destino o cofrinho de plástico dos filhos de cinco anos. De centavo em centavo a gente enriquece nas sinaleiras. E um dia que ganhei mais de dez cruzados. Dez vezes sete, setenta. Setenta vezes quatro, me deixa pensar... Acho que são duzentos e oitenta. Por mês. Trabalho duro, temos que esticar a mão por entre o vidro do motorista e quase obrigá-lo a "doação". Já arranhei alguns veículos, furei pneus, e arranquei placas. Cinqüenta centavos fazem toda a diferença. Mas agora eu estava em uma casa, e não sei quem mora nela, Gaspar disse para eu vir até aqui, arrombar a porta e esperar o telefone tocar - Não entendo, o espelho me irrita, não gosto da minha imagem; não gosto do meu corpo; tenho a cabeça achatada, uma barba enorme, minhas canelas são finas e meu tronco espesso – Gaspar meu passou uma seqüência de quatro números.

Era uma cilada. A polícia chegou. No entanto, algo me chamou atenção: a placa da viatura de listras pretas era composta pelos números 1344. O que Gaspar me aprontava? Durante o percurso descobri que eu não estava sendo preso, e não estava sendo transportado por agentes da lei. Eram narcotraficantes, que me pegaram como "laranja". Gaspar me indicou para um serviço sujo, mas lucrativo. De mendigo para laranja. Um carro de polícia furtado, dois narcotraficantes e um morador de rua. Uma ótima notícia para as páginas policiais. Colocaram-me em um ônibus que seguiria até o interior de Mato Grosso do Sul, lá eu teria que entregar o pacote para um senhor chamado "Macalã".

Encontrei Macalã às quinze horas da tarde seguinte. Entreguei a encomenda e as pessoas continuavam me ignorando. Com o dinheiro que ganhei, daria para voltar setenta e oito vezes para a minha cidade natal de avião. Cortei o cabelo, barbeei-me, vesti um terno e incrivelmente, voltei a minha cidade natal. Voltei para minha verdadeira casa, onde minha esposa e meus filhos me aguardavam há sete meses. Foi um retorno seco, sem grandes emoções. Minha esposa achou que eu estivesse morto. Porém voltei mais bonito, forte e rico. 1344. Minha esposa continuava quieta, triste, preocupada. Foi quando Gaspar chegou, beijou um dos meus filhos, beijou minha esposa e olhou nos meus olhos locucionando: "Você está morto." No fundo eu estava. Gaspar substituiu meu papel de marido e pai. Perguntei-lhe por que havia me cedido a chance de enriquecer ilegalmente. Ele responde seco. “Queria você de volta aqui, para poder sentir na pela a mesma humilhação que eu passei quando me traíste”. “Eu nunca o traí, recebi uma carta sua em minha casa de papelão no centro da cidade, não o via desde os tempos de faculdade”. “Você é mesmo um louco, Deixou sua família para morar nas ruas”. “Minha família precisava de dinheiro e eu prometi a minha esposa que eu não botaria os pés em casa enquanto eu não pudesse dar uma boa vida a ela e aos nossos filhos”. “Pois ela cedeu ao meu dinheiro, ao meu amor”. “Ela não te ama”. “E ama quem então?, um mendigo que enriqueceu às custas do tráfico?, Tu não sabes nada da vida do crime, rapaz!, Tu não sabes nada! É um falso moralista, crítico de si mesmo; ganhar dinheiro em sinaleiras, sinceramente, onde tu estavas com a cabeça?”. “Gaspar, tu devias ver o ângulo que eu vi, os rostos das pessoas te ignorando, te tratando como lixo”. “Tu és um lixo humano, largaste tua família e me traíste; agora estamos quites”. “Qual foi a traição afinal, Gaspar?, diga-me na cara!, Qual foi a traição?, o fato de eu ter te ajudado a colar na faculdade, e depois ter te denunciado para o ministério público anos mais tarde?, não seja ridículo, seu jornalistinha de merda!, Fui para as ruas para sentir na pele a vida de um intelectual frustrado com nossa condição de cobaias da má fé; todo dinheiro que tens hoje é fruto de minha inteligência, seu arrogante; fui eu quem construiu essa casa, eu que paguei a cama onde hoje tu transas com minha esposa; não ouse mencionar a palavra vingança, ou humilhação; o recalcado aqui és tu; quer saber, tome este dinheiro; não preciso dele; agora saia da minha casa”. “Não me faça rir, seu tolo; como sustentará tua família?, vais para as sinaleiras do sistema humano?, Caíste na sarjeta por ser ético, limpo, moralista; saia você de cima do meu carpete, sinto o cheiro de sua casa de papelão em seu corpo mal lavado”. “Não ouse...” “Escuta aqui, não ouse tu, meu chapa!, Teu lance por aqui acabou; manda-te; antes que eu tenha que usar forças para isso”. “Tudo bem, você ganhou”.

2008

Fui-me embora, voltei para minha casa de papelão. Abandonei de novo família, amigos, vida. Moro na Avenida Baltazar há dezoito anos. Sou um sobrevivente. Hoje retornei à casa que foi tomada de mim. Gaspar sustentou minha família até a data de sua morte. Devia dinheiro para o tráfico, o chefão não deixou barato. Liquidou minha esposa e meus filhos também. Num tempo em que eu não sentia mais amor por ninguém. E o mais interessante: Mesmo dentro de minha caixa de papelão eu conseguia ler. Exemplares doados pelas boas velhinhas. Leio nas sinaleiras. Vivo nas sinaleiras. Estava na hora de voltar para a minha casa, hoje abandonada, onde não tinha Gaspar, nem esposa, nem filhos. Contudo, havia um espelho intacto, minha imagem era igual à mesma de dezoito anos atrás. O mesmo espírito. Chorei. Entedia as razões. Finalmente quebrei o espelho. Renovei-me para morrer.

12 comentários:

Renata Silva disse...

Adorei o texto. Principalmente por sentir as frustrações daqui.

Bjs

Kamilla Barcelos disse...

Nem preciso dizer q gostei, q vc escreve bem, né?
Adorei o conto!!

Alessandra Castro disse...

Ótimpo conto, deu para viver intensamente cada uma das expressões apresentadas. Sinto que nosso protagonista agora sim está livre das suas maldições.

Gabi disse...

teu jeito de escrever é ímpar meu amigo... só isso que eu tenho pra te dizer já que esse conto me deixou sem palavras.
;*

Alessandra Castro disse...

Eskeci de dizer que Gaspar é um lindo nm. ;)

Anônimo disse...

Que texto, meninoooo!!!!!!

eu pensei bem e me senti assim também, vejo minha imagem mas nao a identifico(mais).

beijo!

Gisele
www.inventandoagentesai.blogspot.com

Kari disse...

Que forte!
E sempre tocante!
Bom demais!!!!

Beijão pra tu

Thaís SBA disse...

Adouro!

Marcos Seiter disse...

Bah, que estória é essa. Muito tri!

Fico pensando sobre nós, meros escritores: será que vivemos numa outra vida as escritas que escrevemos?

Irmão, um abs e bom domingo!!!


Marcos Seiter

Colégio de Aplicação disse...

Cara vc escreve demais... parabens! jah vi tbm teu texto dsicultindo a relação... queriamos muito montar aqui no nosso grupo.. mas para isso, preciamos de tua autorizacao...

porfavor, entra em contato conosco pelo email adrianobarros-@hotmail.com

abraço e sucesso!

Anônimo disse...

nossa.. já tá preparado p escrever um best seller

Andressa Xavier disse...

Não atualiza mais???