Coluna do Luan

sábado, 11 de agosto de 2007

Fatos e versões. O poder de uma vida qualquer. Últimas 24 horas.





120 quilômetros por hora.

Não havia como cogitar a possibilidade de se salvarem. Na condução do automóvel estava Leandro, que, nos 25 anos de sua vida, sempre fora bem sucedido. Seus pais o tratavam como um príncipe, recebia tudo de mão beijada. Nunca se esforçou para conseguir o que queria, nunca escorrera do seu corpo uma gota de suor que não fosse à das noites de baladas seguidas de sexo desleixado. Era um rapaz jovem, bonito, que teve muitas namoradas, muitas parceiras. E, justamente, no banco de carona, estava a atual namorada de Leandro. Seu nome? Fernanda. Ela, muito pelo contrário é filha de casal humilde. Sua mãe durante anos trabalhou como doméstica até desenvolver um câncer de pulmão devido aos inúmeros cigarros que fumara na vida. Seu pai continua trabalhando como guarda noturno de uma transportadora, correndo o risco de levar um tiro na cara a cada noite de serviço.

160 quilômetros por hora.

Fernanda lembrava da amiga Letícia que a ajudava na faculdade, nos relacionamentos difíceis, não se conformava em deixar a amiga, assim como a família que sempre amou. Tanto Leandro quanto Fernanda tinham a família como base de tudo.

180 quilômetros por hora.

Agora é a vez de Leandro lembrar de quando seu pai o levava todas terças e quintas nas aulas de natação. Nadou durante sete anos. Naquele momento ele não entedia como foi se perder no mundo. Como pôde mudar tanto. Lembrou-se também da mãe, que sofre de pressão alta. Sempre tivera uma preocupação a mais com ela, quando saia para balada dava antes, um beijo na testa da mãe, e um tapinha no ombro do pai dizendo: “Não tenho hora pra voltar”.

200 quilômetros por hora.

Uma insignificante pedrinha no caminho já seria o suficiente para capotar. Fernanda põe a sua mão esquerda tatuada sobre a mão direita de Leandro que naquele instante, segurava a alavanca da marcha. Ela olha para os olhos de Leandro que estavam fixados no pára-brisa.

220 quilômetros por hora:

- Eu sempre vou te amar. – Diz ela.

É ele que agora olha para o lado, sem hesitar, estica seu braço direito, abre a porta do caroneiro e empurra Fernanda para fora do veículo. Ela rola metros a fio esfolando-se e ensanguentando-se. Ao fundo, Fernanda vê a poeira seguida por um barulho estrondoroso.

- Podem tirar o soro. – Diz o médico.

Ela acorda, olha para o lado e vê a mãe respirando por aparelhos, sua mãe estava em estado terminal. Junto ao leito, estava seu pai, o vigilante noturno não conseguia disfarçar as lágrimas que escorriam continuamente no seu rosto. Quase perdeu a única filha, e por questão de tempo, perderia a esposa. O Vigilante como um lapso de memória recorda-se do dia em que conheceu a mãe de Fernanda. Estava caminhando solitariamente nas ruas, período pós-ditadura, até que avista uma bela jovem sentada no banco da praça, fumando um cigarro. Lembrara da fumaça que integrava seus ardumes. Foi amor à primeira vista. Pena que a mesma fumaça que o atraiu, no momento é a causadora da morte da pessoa que ele mais amou. O vigilante coloca a mão esquerda sobre a mão direita de sua esposa e diz a mesma frase quando a conhecera:

- Eu vou amar-te para sempre.

Fernanda estava deslumbrada com o ato de amor do pai, e começa a chorar porque sabe que não terá mais a presença da mãe que durante anos vivia dizendo que a amava muito. É como se um pedaço do seu corpo fosse junto com a da sua mãe.


(24 horas antes)

- Ai, Leandro, tu és louco de não usar camisinha. Não acredito que fizemos isso.
- Relaxa, tu toma pílula.
- É, mas pílula não previne doenças.
- Do que está falando, eu sou limpo!
- Como posso ter certeza?
- Tu não confias em mim?
- Confio no teu amor.
- Arrume-se, vamos embora.
- Se tu queres assim.

Fernanda havia quebrado totalmente o clima de sensualidade que excitava Leandro. De Certo modo, as palavras de Fernanda fizeram efeito. “Confio no teu amor”. “Uma Puta pobre, não tem onde cair morta, quer ficar se fazendo para mim na cama, vá puta que te pariu” pensava Leandro, furioso, enquanto tirava o carro do estacionamento do motel. Deixou Fernanda na porta de casa, e durante todo o percurso o silêncio entre os dois foi o único diálogo. Mais uma vez as palavras de Fernanda surgiam efeito. “Confio no teu amor”. Essa frase não saia da sua cabeça. Até que seu celular toca:

- Alô
- Oi, Leandro, é a Rita.
- O que tu queres, Rita? Já falei que não era pra me procurar mais. Qual o seu problema?
- Leandro, nós precisamos conversar.
- Do que está falando? Nós já terminamos, Rita. Não temos mais nada um com outro.
- Leandro, tu não ta entendendo, é um assunto muito sério.
- Assunto sério? Ou seria uma desculpa pra me ligar?
- Leandro, eu estou com AIDS.

A notícia cai como uma bomba em sua cabeça. Agora sim que as palavras de Fernanda voltavam a todo o momento. “Confio no teu amor”. Leandro desligou o telefone no mesmo instante. Não podia ser verdade. Ele, com AIDS. Nunca se cuidou na vida, apesar de também nunca ter lhe faltado nada.

Fernanda chega em casa e vê a mãe tossindo muito, fica atônita observando o estado de saúde dela.

- Mãe, a senhora está bem?
- Fernanda, minha filha, a mãe está muito doente, minha filha. Muito doente, mesmo.
- Do que a senhora está falando?
- Às vezes eu acho que tenho pouco tempo de vida, sabe minha filha...
- Que horror! Vira essa boca pra lá! Onde está o pai?
- Está descansando no quarto, logo, logo, anoitece e ele precisa trabalhar. Ah, a tua amiga, como é mesmo o nome dela....
- A Letícia?
- É, ela mesma.
- O que tem?
- Ela te ligou, estava preocupada contigo, minha filha.
- Comigo?
- É, ela disse que teve outra visão, sempre achei essa guria muito estranha.
- Mãe, tu sabe que ela é médium.
- É, mas pelo tom da voz dela, a visão era grave, e sobre ti.

Leandro entra no quarto de sua mãe, interrompe a leitura, ela sempre foi viciada em livros.

- Mãe, tu sabe que eu te amo, não é?
- O meu filho! Claro que sei, eu também te amo muito. Mas o que aconteceu?
- Nada, não, mãe. Só precisava me certificar disso. Onde está meu pai?
- No trabalho, só vai chegar mais tarde.
- Ta bom, depois eu converso com ele.
- Está tudo bem mesmo, meu filho?
- Claro, não se preocupa, minha velha. Eu estou bem sim.

Sentimento de mãe, nunca falha, notou que Leandro estava aflito, mas achou que ele fosse se abrir com o pai dele, mais tarde. Voltou a ler.

Fernanda liga para Letícia, guindo de curiosidade.

- Alô, Letícia? Minha mãe disse que tu ligou.
- Sim, liguei sim.
- O que houve?
- Fernanda, tu vai sair com o Leandro amanhã, não vai?
- Em principio sim, brigamos hoje, mas acho que vamos.
- O que aconteceu?
- Ah, briga boba.
- Fernanda, não vá.
- Por que, amiga? Às vezes tu me assustas, sabia?
- Fernanda, é sério. Tive uma visão muito estranha.
- Ai, Lê, tu e as tuas visões!
- Só não quero que tu te machuques.
- Amiga, eu te amo, sei que tu se preocupa comigo, mas deixa que eu sei me cuidar está bem? Beijo, Lê, amanhã nos falamos.
- Fé, espere....
Desliga o telefone na cara da amiga, estava esperando a ligação do namorado. E não deu outra, um segundo depois, Leandro liga.

- Fala, amor. – Diz Fernanda.
- Oi, me desculpe por hoje, ok?
- Tudo bem, desde que tu prometas que a partir de agora nós vamos começar a se prevenir.

“Confio no teu amor” aquela frase martelava os pensamentos de Leandro. Ele responde:

- Tudo bem, eu prometo. Mas escuta, tudo certo para amanhã? Combinei com o meu vô de irmos à chácara dele, ta lembrada?
- Claro que sim! Que horas tu vem me buscar?
- Lá pelas oito, temos que sair cedo daqui.
- Tudo bem, eu te espero então.
- Ta, então até amanhã.
- Está tudo bem contigo?
- Sim, por quê?
- To te achando meio estranho, tua voz parece diferente.
- Bobagem tua. Vemos-nos amanhã, ok? Beijo. Te amo muito.
- Eu também te amo muito, e pra sempre.

Era linda a conversa dos dois por telefone. Na manhã seguinte Fernanda estava pronta, até ouvir as tossidas da mãe.

- Mãe, o Leandro chegou, to indo ta? Te cuida, minha mãe.
- Tu também, minha filha. Outra coisa, a mãe te ama muito, viu?
- Também te amo mãe. Beijo, até.
- Vai com Deus, minha filha....

Ambos entram no carro, e Leandro arranca numa velocidade alta.

- Que isso, amor? Por que está indo tão ligeiro?

A vida não fazia mais sentido para ele, e naquela altura do campeonato, imaginava que para Fernanda também não.

- Não aconteceu nada, só estou com pressa.
- Não, tu estás estranho, o que aconteceu?

120 Km/h

- Já disse não houve nada!
- Então porque está tão rápido? Tu está me assustando!
- Te assustando é? Então imagina viver sabendo que não é por muito tempo!
- Do que está falando, Leandro! Está me deixando nervosa! Diminua a velocidade!

160 Km/h

Ambos começam a pensar na família, nos pais, pensamentos muito rápidos em meio a gritos.

180 Km/h

Leandro não responde mais nada com nada, só pensa na família, e acelera cada vez mais o carro.

200 Km/h

O carro desliza, Fernanda grita, e Leandro continua acelerando.

220 Km/h

- Eu sempre vou te amar.

Nesse momento ele, por impulso, decide se matar sozinho, rapidamente a joga para fora do carro, e se arrebenta contra um muro de proteção da pista contrária.


O médico vem na direção de Fernanda e diz o que ela ainda não sabia. Com muita calma, ele fala que fez alguns exames por prevenção e detectou que ela tinha HIV positivo. Desde então Fernanda vive a base de remédios, sem a mãe por causa do cigarro, e sem Leandro por causa da negligência com a AIDS. Ela que também foi vítima, agora vive com um vírus que a cada minuto se alastra para mais uma pessoa no mundo inteiro. Fernanda nunca teve dinheiro e continua não tendo. Sofre preconceitos, e carregará por um bom tempo na memória a perda da mãe e do namorado. Sem contar no seu pai, o vigilante que passará o pouco tempo de vida que lhe resta superando a morte da esposa, e convivendo com a filha aidética. É, e tem pessoas que acham o mundo justo. Mas vai saber, talvez até seja.